Dr. Lais Marques da Silva,
Custódio não alcoólico por 9 anos e Presidente da JUNAAB por 6
A relação entre seres humanos é especialmente intensa e poderosa quando ocorre nos grupos de Alcoólicos Anônimos, quando é feita olho no olho, face a face, indo assim muito além do encontro comum, casual, a que estamos acostumados, e o do simples diálogo. A face é a parte do corpo que está nua e indefesa, mas que, apesar disso, mostra um grau de resistência passiva a qual ainda preserva a própria liberdade, a individualidade.
Esse rico encontro em A.A. revela, de um lado, a condição de carência e de fragilidade do alcoólico, enquanto ainda na ativa, que afasta a ideia de igualdade de condições e, do outro lado da relação, faz nascer, no companheiro que acolhe o recém-chegado, o sentimento de responsabilidade em relação ao alcoólico que ingressa num grupo de A.A.. A face humana nos chama para dar, para servir; ela nos ordena. O companheiro que se encontra em recuperação e que recebe o ingressante conhece o sofrimento intenso de que ele padece, conhece a dor profunda que ele sente e sabe a intensidade dramática do apelo estampado na sua face e que clama por uma resposta, para uma ação por parte do companheiro que acolhe, de estender a mão para ele que ainda sofre no alcoolismo. Nesse momento, o companheiro em recuperação sente que tem que responder e, ao o fazê-lo se torna, em contrapartida, responsável. Do eu ético, de ethos que significa caráter, vem a decisão de responder àquele apelo do recém-chegado, àquela situação dramática e, ao responder, o companheiro se torna responsável. A responsabilidade pelo outro é o que constrói verdadeiramente o indivíduo, o ser único que cada um de nós é, uma vez que, na decisão de ser para o outro, ninguém pode ser substituído. Como Saint-Exupery escreveu no Pequeno Príncipe, “você se torna responsável para sempre por aquilo que cultivou, que você é responsável pela sua rosa”.
É nesse momento e, precisamente, nesse relacionamento intensamente humano e enriquecedor que ocorre o nascimento de um valor de natureza ética, moral, no companheiro que recebe o recém-chegado, do sentimento não só do dever, mas da obrigação de responder ao apelo da sua face. A partir dessa decisão de agir, o companheiro em recuperação se torna mais humano, fraterno e solidário. No acolhimento de um recém-chegado e a partir do seu rosto os membros de A.A. se tornam éticos e caminham para uma nova dimensão do viver, que é o humanismo.
O encontro olho no olho, face a face, com o recém-chegado leva a uma estreita proximidade porque é marcado pela brandura e pela suavidade. A relação olho no olho, face a face é, sobretudo, uma relação que faz nascer esse valor precioso e transformador, valor moral. É imperativo responder e daí o surgimento da responsabilidade, que é fato básico que dá direção e sentido à vida do ser humano; é um imperativo, é pleno de significado. O outro ser humano existe, tem o mesmo direito de existir e é também um ser distinto, único e ímpar. A existência, em si, de cada um, pertence a si mesmo e daí o seu isolamento e a sua solidão, quebrados no encontro olho no olho, face a face. Nesse momento, a filosofia não é amor pela sabedoria mas se torna a sabedoria do amor.
Mais adiante, quando numa reunião, é oferecida ao recém-chegado a oportunidade de falar, sem qualquer interferência ou imposição e, se ele decide doar o seu depoimento, novamente se estabelecerá uma relação olho no olho, face a face, igualmente intensa, enriquecedora e libertadora feita com os companheiros presentes numa reunião de grupo, que ocorre num ambiente de profundo silêncio empático propício à troca de interiores. Nesse momento, o alcoólico vai ter a experiência de ver-se através dos olhos dos outros e é só dessa maneira que consegue se encontrar consigo mesmo e com os outros; e isso ocorre nas reuniões dos grupos de A.A.. O alcoólico que chega precisa dos outros companheiros ali presentes, precisa da liberdade de que desfrutam e até mesmo da felicidade deles para realizar a sua própria vida. Aí o novo caminho está em se conhecer melhor, amar mais os outros e desfrutar da “sabedoria do amor”. Ao olhar diretamente para os companheiros, uma nova e intensa relação olho no olho, face a face, se estabelece e o companheiro percebe que algo o atrai, algo que vai além de si mesmo.
Surge, na mente do recém-chegado, o sentimento de responsabilidade em relação aos companheiros do grupo diante do caloroso acolhimento que recebe ao longo das reuniões, quando se dá conta do sentimento de natureza ética despertado na sua mente. O Poder Superior, de alguma forma, se revela na face dos companheiros que o ouvem em silêncio absoluto, em silêncio respeitoso e empático. Fica criado um campo de força entre as faces que estão em comunicação profunda, densa, campo como que magnético, e que faz surgir uma espiritualidade e também a ideia do sagrado.
O relacionamento olho no olho, face a face, quebra o isolamento, usualmente profundo e atroz do alcoólatra na ativa e o integra com os demais companheiros do grupo. É preciso estar ali presente para se tornar presente também para os outros. O recém-chegado se torna ponto de convergência e, estando consciente e agindo honestamente, a sua mente fica mais serena e aberta e o seu coração mais feliz e pacífico. Essa relação virtuosa com o grupo traz calor ao coração e claridade à mente.
Outra situação especialmente enriquecedora e de grande importância no caminho da recuperação do alcoólico ocorre no relacionamento com o seu padrinho em A.A.. As trocas interiores são frequentes e de intensa espiritualidade e também decisivas para trilhar a via que leva à construção de um novo ser.
Finalmente, vamos nos mover para o rico e redentor relacionamento olho no olho, face a face, que ocorre ao longo da prática do Passo nº 5. Esse relacionamento abre espaço para que ocorra a reconciliação consigo mesmo, com os outros e com o Poder Superior. Portanto, é uma fase da maior importância para o alcoólico que caminha para o perdão, para a harmonia e para a libertação do sentimento de culpa. O relacionamento, o campo de forças que se estabelece entre o alcoólico e a pessoa escolhida para trilhar o caminho apontado pelo referido passo é decisivo para praticar um dos mais difíceis do Programa de Recuperação. Ele é indispensável para poder desfrutar de uma sobriedade duradoura e de paz de espírito. Para a prática desse passo é preciso encontrar um ouvinte com o qual seja possível olhar de frente, olho no olho, face a face, e que ele seja uma “boca fechada”, o que nem sempre é fácil de encontrar. Praticá-lo é contar a história da sua vida, de maneira aberta e honesta e, relembrando, foi algo parecido com isso que tudo começou em 1935. Contar a sua história é como se entregar nas mãos do Poder Superior e daí o estabelecimento da indispensável comunicação profunda e verdadeira, como o que acorreu naquele encontro olho no olho, face a face, de importância fundamental para a construção de um novo ser e para que se possa viver uma vida plenamente vivida e realizada a partir do momento presente, o único que realmente temos, sendo oportuno observar que sentimos um sabor de eternidade no momento presente que se vive em A.A…
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